terça-feira, 20 de janeiro de 2009
Metalinguagem: por que a Rede Globo é culturalmente tão poderosa.
A Globo é, e parece sempre ter sido, a mais poderosa rede de televisão brasileira. A força da Globo não vem apenas de seu capital financeiro, mas de seu capital cultural. Conseguiu ao longo dos anos reunir um corpo de técnicos, escritores, apresentadores e atores de grande destaque - no caso dos atores, quando o virtuosismo não fala mais alto, é certo que a Globo consegue capitanear os mais belos.
Pelas competências que reúne, entre outras coisas, a Globo domina o mercado publicitário televisivo. É a mídia com maior alcance, e por isto mesmo a mais cara. A fonte de renda alimenta o talento e o talento alimenta a fonte de renda. É um círculo virtuoso, portanto. Este talento, é preciso que se diga, é um talento comercial. A Globo, embora seja uma empresa de entretenimento, não se presta a fazer objetos de “alta-cultura”. No entanto, faz muito bem aquilo a que se propõe: seduzir e dominar as mentes dos milhões de brasileiros que a assistem todos os dias.
Esta vocação de mercado que a Globo tem não a impediu, entretanto, de gestar obras-primas. “O Auto da Compadecida“, série que logo foi compilada em filme - e mesmo assim atraiu uma multidão aos cinemas brasileiros - nasceu na Globo. “Hoje é dia de Maria” também. Programas humorísticos ácidos como “TV Pirata” ou “Casseta e Planeta” - este último apenas nos anos iniciais - são outros achados - além do imortal Chico Anísio, claro. Atores como Lima Duarte e Tony Ramos pertencem ainda hoje a esta casa.
O carro chefe da programação, o produto de maior destaque, sempre foi, e é, a telenovela. O prestígio internacional que a Globo angariou deve-se muito a este tipo de produto, que do ponto de vista técnico supera em muito as rivais mexicanas - que são veiculadas ainda hoje em seu principal concorrente histórico: o SBT. A dramaturgia da Globo é responsável por criar personagens e novelas memoráveis. Sinhozinho Malta, Sassá Mutema, Tonho da Lua, Viúva Perpétua, Odorico Paraguaçu e, recentemente, a Nazaré de Renata Sorah, serão para sempre lembrados. A discussão do relacionamento amoroso na obra de Manoel Carlos nos dá ainda hoje diálogos inesquecíveis, atingidos apenas pela alta dramaturgia.
Embora fazer arte não seja o objetivo imediato da Globo, dar produtos artísticos de alto valor é o que ela faz por vezes. Nisso reside o primeiro ponto forte da emissora. O que significa dizer que seu poder ideológico é em muito derivado da qualidade dos produtos que ela gera.
É evidente que poderíamos discorrer sobre a manipulação ideológica que a emissora faz através de seus noticiários e novelas, mas seriam necessárias muitas outras linhas para abordar este aspecto, tendo necessariamente de falar sobre a atual ideologia que hoje ameaça a hegemônica Globo: a rede Record que, baseada num novo modelo de gestão, e financiada pelo capital vindo das instituições evangélicas, transformou o cenário de concorrência antes polarizado entre o SBT de Silvio Santos e a Globo de Roberto Marinho.
O outro pilar sobre o qual se baseia a Globo é uma estratégia muito poderosa de metalinguagem que alimenta e reforça o poder cultural que ela já tem. A Globo faz de sua programação um circuito auto-referente. Esta estratégia de metalinguagem não foi utilizada por nenhuma outra emissora - talvez apenas, mas em muito menor grau, pela MTV que usa certos programas para aludir ao próprio conteúdo. Reparemos como os programas da Globo falam sempre sobre ela mesma: o Vídeo-Show é um programa que fala sobre a Globo, O Vale a Pena Ver de Novo é a repetição das novelas, o Casseta e Planeta ocupa grande parte de seu tempo com a paródia das telenovelas, a Pizza do Faustão é um programa com atores globais, isso sem falar dos quadros Dança com Famosos e suas variações e o Arquivo Confidencial. Mas é preciso que se diga que a Globo só consegue fazer isso porque tem produtos. E porque tem produtos em um número suficiente, pode gerar outros produtos que falem sobre os produtos que já tem. Reside justamente aí a circularidade metalingüística. Ela aumenta seu capital cultural a partir do capital cultural que já possui. E por isso reforça a marca.
Por conta de problemas financeiros recentes, e tentando mobilizar a opinião pública sobre certos aspectos positivos da atuação da emissora, ela freqüentemente vem também veiculando anúncios institucionais sobre si mesma, dando a entender como a programação da globo tem um efeito positivo sobre a construção de valores no combate ao racismo, à violência contra a mulher e à inclusão de deficientes, temas freqüentes em suas novelas. Esta nova estratégia de auto-referência positiva, que inclui aí Amigos da Escola, Criança Esperança e correlatos, deve ter como objetivo comercial muito provavelmente sensibilizar a opinião popular para, quem sabe, abocanhar uma verba pública ou um incentivo do governo em casos de novas crises financeiras.
Aliada à estratégia de auto-referência, a Globo utiliza uma outra: o silêncio total sobre as concorrentes. Se apresenta um egocentrismo cultural de um lado, por outro é uma esquizofrênica: em sua programação é como se as concorrentes não existissem. O Silvio Santos, por exemplo, a despeito de ser um dos maiores empresários do país, só apareceu na Globo em duas ocasiões: seu seqüestro - sobre o qual o noticiário global não poderia se calar, com risco de tornar pública a estratégia de evitar a menção aos concorrentes - e o desfile das escolas de samba, quando Silvio Santos foi homenageado, ocasião em que era impossível evitar mostrar o apresentador, que desfilava num dos carros alegóricos. Imagino que a reunião de pauta jornalística nestas duas ocasiões deva ter sido um evento interno muito interessante, com diretores globais e jornalistas coçando a cabeça em discussões sobre o que fazer.
Enquanto a Globo se auto-valoriza e evita as concorrentes, a recíproca não acontece: emissoras concorrentes freqüentemente fazem o contrário: falam da grandona. Assim procedem programas como o TV Fama da Rede TV, os programas vespertinos apresentados por mulheres com quadros que discutem as telenovelas ou mesmo o provocante Pânico, famoso por perseguir celebridades das emissoras alheias. Assim o poder cultural da Globo é alimentado não apenas por uma dinâmica interna gerida por ela mesma, mas também por forças de fora, construindo assim um universo cultural que orbita em torno dela.
Curioso observar como esta estratégia de auto-referência e metalinguagem vem sendo descoberta e também utilizada pela Rede Record que começa a soltar programas nos quais os convidados são atores de suas próprias telenovelas e apresentadores da casa. Se for capaz de levar a cabo a estratégia que aprendeu com a líder de mercado, a Record se firmará ainda mais como uma interessante e poderosa ameaça na guerra de mercado das redes de televisão.
Por Flávio Tonnetti
Fonte: www.ensino.blog.br
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário